Covid como doença ocupacional

O art. 29, da MP nº 927/2020, estabeleceu que “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.

Em 29 de abril de 2020 o STF[1], ao julgar sete ações – ajuizadas respectivamente pelos partidos PDT – Partido Democrático Trabalhista (6.342), Rede Sustentabilidade (6.344), CNTM – Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (6.346), PSB – Partido Socialista Brasileiro (6.348), PCdoB – Partido Comunista do Brasil (6.349), Solidariedade (6.352) e CNTI – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (6.354) – decidiu, por maioria, pela suspensão da eficácia do referido art. 29.

Nos termos da manifestação do Min. Alexandre de Moraes, o primeiro a se manifestar pela inconstitucionalidade do art. 29[2], a norma poderia ser considerada “ofensiva” em especial a trabalhadores de atividades essenciais expostos ao risco (profissionais de saúde, motoboys,  comerciários que trabalham em farmácias e supermercados), ante a dificuldade que os mesmos teriam de provar nexo causal (relação de causa e efeito entre o trabalho e a doença). O Ministro sustenta que deve ser adotada a teoria da responsabilidade objetiva nos termos do decidido no Recurso Extraordinário nº 828.040[3], de sua relatoria. Na ocasião, estabeleceu-se o Tema de Repercussão Geral nº 932: “O artigo 927, parágrafo único[4], do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII[5], da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial[6], com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade”.

Também votaram neste sentido, os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Carmen Lucia,  Ricardo Lewandowski e Luiz Fux.

Para o ministro Fachin: “A previsão de responsabilidade subjetiva parece uma via adequada a justificar a responsabilização no caso das enfermidades decorrentes de infecção pelo novo coronavírus, de forma que se o empregador não cumprir as orientações, recomendações e medidas obrigatórias das autoridades brasileiras para enfrentar a pandemia pelo novo coronavírus, deverá ser responsabilizado. Assim, o ônus de comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho e/ou por causa do trabalho deve ser do empregador, e, não, do empregado, como estabelece a norma impugnada.”

Embora observe-se divergência com relação a teoria a ser adotada (subjetiva ou objetiva), há consonância nos votos quanto a distribuição do ônus da prova[7]: será do empregador (e não do empregado, como sugeria o art. 29).

O Direito brasileiro, até o momento, dispunha que somente se presumiam como decorrentes da atividade laboral as doenças relacionadas no Anexo II, do Decreto 3.048/1999, conforme estabelecido no art. 20[8], da Lei nº 8.213/91. Doenças endêmicas[9], conforme o disposto na alínea “d”, do § 1º, do referido art. 20, somente seriam consideradas como doenças ocupacionais mediante comprovação do nexo causal (redação no mesmo sentido daquela do art. 29, da MP nº 927/2020, cuja eficácia foi suspensa).

A decisão do STF acima mencionada, com relação a Covid-19, rompe com o que até então se encontrava estabelecido quando a presunção de doenças laborais. Assim, presume-se que a Covid-19 é uma doença ocupacional, cabendo ao empregador prova em contrário. Resta ao empregador ser extremamente diligente em tomar todas as medidas preventivas indicadas pelos órgãos de saúde, com vistas a tentar afastar a mencionada presunção.


[1] https://www.youtube.com/watch?v=CGlHDn-h2L8

[2] 14:20 do video da sessão, link acima.

[3] Trecho do voto: “Em 3/9/2009, o Supermercado Comper (título do estabelecimento utilizado por EBS SUPERMERCADOS LTDA, parte ora recorrida) sofreu o ataque de assaltantes, que almejavam subtrair o malote de dinheiro que estava sendo acondicionado em carro-forte. O autor da presente reclamatória trabalhista, Marcos da Costa Santos, participava da cena na condição de vigilante, contratado pela empresa PROTEGE S/A – PROTEÇÃO E TRANSPORTE DE VALORES, parte ora recorrente. Após troca de disparos entre os criminosos e o autor e seus colegas, o roubo foi frustrado. Embora não atingido pelos projéteis, Marcos da Costa Santos passou a experimentar graves consequências psíquicas, decorrentes do episódio traumático que vivenciou, as quais o incapacitaram para o trabalho”.

[4] Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

[5] São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.

[6] “A natureza que implica riscos maiores é a natureza da atividade, não é a natureza da ocorrência momentânea, não é a conduta que levou ao dano. Um roubo a mão armada, por exemplo, a um templo budista, onde há um tiroteio. A atividade de um funcionário de um templo budista não é de risco. O que ocorreu gerou um risco excepcional, mas não decorrente da própria atividade desenvolvida. Diversamente, da presente hipótese, onde o funcionário anda armado, com colete à prova de balas, dentro de um carro forte, e tem o dever de transportar valores. O risco é inerente à sua atividade. “Ah, mas ele que escolheu a atividade!”. Sim, mas a atividade é de risco. A atividade, aqui, traz o risco inerente ao seu exercício, com habitualidade.”

[7] “Tratando-se de presunções juris tantum, não há exatamente um afastamento do conceito de culpa da teoria clássica, mas apenas a derrogação de um princípio dominante em matéria de prova, qual seja, o princípio do ônus da prova. Fixadas por lei as presunções relativas, o fato lesivo é considerado, em si mesmo, um fato culposo e, como tal, determinará a responsabilidade do autor. Se este não provar que sua conduta não foi culposa ou que o dano resultou de causa alheia a sua vontade, como força maior, caso fortuito, culpa da própria vítima ou fato de terceiro, será responsabilizado independente de ter realmente agido com culpa, pois essa será presumida. Todavia, embora a presunção relativa se enquadre no ambiente ideológico do subjetivismo, trata-se na realidade de uma máscara ao conteúdo objetivista da responsabilidade porque, conquanto presumida, o que se busca é a culpa. SANSONE, Priscila David. A inversão do ônus da prova na responsabilidade civil. In: Revista de Direito do Consumidor. vol. 40/2001. p. 129 – 169. Out – Dez / 2001. (grifo nosso)

[8] Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:

I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;

II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.

§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:

a) a doença degenerativa;

b) a inerente a grupo etário;

c) a que não produza incapacidade laborativa;

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.

§ 2º Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.

[9] Aquelas que se manifestam com frequência em determinadas regiões.